MEMÓRIAS DA FERROVIA
PROFISSÕES FERROVIÁRIAS E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
Paulo Roberto Filomeno
Na cidade de Rio Claro, SP, existe uma casa com uma plaquinha na frente que quase passa despercebida, principalmente dos que estão de carro. Nela está escrito UFA – União dos Ferroviários Aposentados. Rio Claro é uma cidade de vocação ferroviária, pois por muitos anos abrigou a principal oficina da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e uma de suas maiores estações, é natural que muitos ferroviários tenham fundado uma associação, pelos motivos que forem.
Nunca entrei lá para conversar com qualquer um daqueles senhores que ficam reunidos lá na frente; minha impressão é que com o passar do tempo cada vez mais vejo menos gente na frente da casa. Consequências naturais da inexorável passagem do tempo.
Mas fico imaginando... E se aqueles senhores de repente passassem a ter 50 anos a menos (só aqueles senhores, não a ferrovia). Voltassem a ter a idade que tinham quando já tivessem uns 5 ou 6 anos de suas carreiras na ferrovia. Encontrariam emprego na ferrovia novamente? (Infelizmente no Brasil, a resposta mais lógica é não, porque tudo virou uma semi-sucata, estações, oficinas, quase nada disso existe, com honrosas exceções).
Mas convido o leitor a continuar com o esforço de imaginação, agora com uma situação mais difícil. Imaginem que as ferrovias brasileiras tivessem se desenvolvido proporcionalmente ao progresso do país nos últimos 50 anos.
Os foguistas e maquinistas que trabalharam com as locomotivas a vapor, paradoxalmente talvez tivessem mais chance, pois haveria muitas ferrovias turísticas. Estas, com seus trens puxados por locomotivas a vapor, incrivelmente ainda procuram gente quem as conhece.
E os demais profissionais?
Vamos ver alguns: bilheteiros de estações?
Saberiam aqueles senhores que carimbavam um pedaço de cartão com as estações de embarque e de destino operar um computador para imprimir um bilhete? Ou seria mais uma profissão extinta, já que o bilhete poderia ser impresso em casa pelo próprio usuário ou mesmo ser digitado na catraca de entrada da estação um código numérico? Indo mais à frente, o próprio celular do usuário, ao ser posicionado na frente da catraca, faria o débito e a identificação do passageiro.
Chefes de trem? Aqueles senhores sérios que andavam pelo trem com um picotador, saberiam operar um dispositivo com um leitor de código de barras conectado a algo semelhante a um tablet? Precisariam ter a sensibilidade de identificar algum suspeito ou arruaceiro e largá-lo na próxima estação? Ou saberiam operar o tablet para tirar uma foto do dito cujo e transmiti-la via internet até o delegado da cidade da próxima estação para uma averiguação e providências da polícia, sem precisar por a mão em ninguém?
Manobradores? Eles mesmos, aqueles sujeitos com os macacões sujos de graxa e poeira que ficavam andando pra lá e pra cá nos pátios virando pesadas chaves nos desvios para compor os trens. Saberiam hoje operar um rádio com comunicação direta ao CCO para solicitar um aperto de botão que movimenta uma chave?
Operadores de cabines? Além de terem a visão completa do pátio também tinham braços de halterofilistas para poderem acionar uma alavanca que virava a chave de entrada do pátio e respectivos sinais a quase 1 km de distância. Hoje bastaria que tivessem força para apertar um botão no CCO.
Curiosamente, nosso senso comum não consegue imaginar essas coisas. Imaginamos que se a ferrovia de repente voltasse e os trens de passageiros voltassem junto, tudo aquilo que existia e que muitos de nós conhecemos, também voltaria junto.
Ledo engano, por dois motivos. Um, uma triste realidade e outro do qual não será possível escapar.
A triste realidade é que os trens de passageiros, como os conhecemos, não vão voltar. E se voltarem, quem sabe somente em longo prazo, voltariam com outra concepção. Nada de locomotivas elétricas de 10 eixos puxando carros dormitórios em trens noturnos (e que faziam um ruído sensacional quando passavam por um AMV). Trens de passageiros serão automotrizes ou trens unidade e por aqui será coisa para os netos adultos dos ferroviários aposentados e olhe lá. E quando isso acontecer, não vai ter mais nenhum na frente da UFA.
O outro motivo é que, se voltarem, a tecnologia deverá estar presente de maneira muito abrangente, como ocorre nos metrôs e como vem ocorrendo paulatinamente nos trens metropolitanos. Sistemas de telecomunicações de grande capacidade transmitindo quantidades imensas de dados interfacearão com sistemas de sinalização, bilhetagem, segurança, comunicações, etc. Será outro mundo, que já existe onde o trem e a ferrovia são levados a sério.
Mas e os profissionais que tomarão conta de tudo isso? Olharão para trás para tentar enxergar no passado o que seus avôs e bisavôs faziam para ver se há algo semelhante? Não valerá a pena. Não há saída.
Enquanto alguns argumentam que a evolução tecnológica atua apenas na "destruição de postos de trabalho", especialistas veem nela a "essência do crescimento econômico, a produção de mais com menos". Um exemplo esclarecedor é o da evolução da mão de obra agrícola nos EUA: "Em 1800, era preciso utilizar quase 95 de 100 americanos para alimentar o país. Em 1900, 40%. Hoje, 3%... Os trabalhadores que deixaram de ser necessários nas fazendas foram usados na produção de casas, carros, móveis, roupas, ferrovias, artes...".
E onde entra a educação nessa história? Uma força de trabalho intelectualmente preparada não apenas produz com maior eficiência como ainda pode ser mais facilmente readaptada para outras funções, quando seus trabalhos se tornam obsoletos. E isso, na ferrovia, talvez mais que em todas as outras áreas é uma constante. Desde que o país também invista em ambos, na educação e numa ferrovia eficiente.
Cada vez mais, a educação se torna matéria-prima do crescimento. E o crescimento vem se as políticas desenvolvimentistas privilegiarem o investimento onde há necessidade. E a ferrovia é fator chave para a redução de custos de transporte de bens e pessoas (está aí o exemplo da China que com sua rede de trens de alta velocidade já transporta dentro do país mais gente do que por aviões).
Se não houver educação séria e investimentos bem aplicados, só nos restará parar e conversar com os velhinhos. E dizer “ai, que saudade...”.

PROFISSÕES FERROVIÁRIAS E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
Trem e Civilização. Foto: MTomasini